Coluna Literária - Clássicos para Hoje
Foto: Arte/FMCBH

Coluna Literária - Clássicos para Hoje

A ideia de criação da Coluna Literária surge da necessidade de reafirmar o compromisso da rede de bibliotecas com a valorização da literatura. A iniciativa pretende difundir o acervo das bibliotecas públicas da Fundação Municipal de Cultura, localizadas em todas as regionais de Belo Horizonte. É também uma proposta de giro pela cena literária e outras produções escritas.

A iniciativa envolve a colaboração dos profissionais que atuam nas bibliotecas: a Coluna Literária é criada a muitas mãos! A partir de escolhas temáticas variadas, a publicação deseja aproximar leitoras e leitores das bibliotecas, dos livros e da literatura. 

Acompanhe nossas publicações mensalmente, toda 4ª quarta-feira do mês você encontrará, aqui no blog do Portal Belo Horizonte, uma nova edição.

 

Apresentação da 3ª Edição

A edição “Clássicos para hoje” se vale de preciosas obras literárias e autores que estão em domínio público: Relíquias de Casa Velha, de Machado de Assis, que veio a público em 1906, e A alma encantadora das ruas, de João do Rio, lançado em 1908. Por meio de resenhas críticas que coadunam estas produções literárias com a nossa atualidade, o convite aos leitores e leitoras é para que visitem (ou revisitem) essas obras com olhar atualizado da realidade social brasileira. O perfil de Maria Firmina dos Reis apresenta a potência dessa intelectual à frente do seu tempo, e o reconhecimento póstumo de seu trabalho, fundamental para nossa história da literatura brasileira.

É fundamental que se observe que as obras e autorias selecionadas falam de um Brasil do passado que se reflete também em nossa atualidade. Sendo assim, o olhar de cada escritora e escritor que trazemos aqui mostra como suas obras estão investidas de um caráter ainda mais atual. Desta forma, convidamos leitoras e leitores a se debruçar sobre textos que de modo algum são arcaicos ou desatualizados. Mais do que um interesse histórico, as obras aqui apresentadas convidam-nos a um olhar sociológico e até mesmo empírico, pois muitas das situações retratadas e críticas feitas ainda permanecem nas estruturas de nossa sociedade.

Por fim, desejamos a todas e todos uma leitura agradável e proveitosa. E sabemos que além das pautas fundamentais de lutas diárias para uma sociedade mais justa e igualitária, o que nos move é também o interesse pela boa literatura. E certamente vocês a encontrarão nas obras que aqui se apresentam.

Lídia Mendes e Samuel Medina 

Redimir o passado, redimir o presente

Relíquias de Casa Velha veio a público em 1906. Último livro organizado por Machado de Assis, reúne contos, poesia, teatro e textos não-ficcionais. A miscelânea de textos (gêneros muito variados), a menor ênfase nos estudos da produção contista de Machado de Assis (prevalecem em número e profundidade as análises de seus romances) e a aparente aleatoriedade na escolha do material de Relíquias não motivaram ainda maiores apreciações de todo seu valor.

O convite aqui, leitora amiga, leitor amigo, é para lermos Relíquias de Casa Velha com um olho no passado e outro no presente. Vamos, sim, com certeza, apreciar a maestria de Machado de Assis em tratar dos grandes temas de certos aspectos da condição humana: o amor (perdido, não correspondido), desejos de traição, amizade, morte. Mas vamos, principalmente, essa é a proposta, pensar, junto com Machado, o Brasil e suas questões mais pungentes.

Não somos as primeiras a indicar uma “unidade temática” do livro, diante da já mencionada “aparente aleatoriedade”. Mas também não somos ainda muitas. Longe de propor anacronismos e aproximações absurdas, o que queremos é que, deleitando-se com os textos, vocês pensem, também, nas contradições do nosso presente republicano.

O “presente republicano” da época de Machado de Assis não é idêntico ao nosso e nem poderia ser. Mas a leitura de Relíquias mostra-nos o quanto “um certo passado” não passou e “um certo futuro” ainda não chegou.
O que se segue agora são insinuações e provocações, pois, afinal, trata-se de um texto curto, e, ademais, a leitura será sua, leitora amiga, leitor amigo, bem como as impressões e críticas. Em “Pai contra mãe” observem a permanência dos efeitos ainda do escravagismo no Brasil: que “ofícios e aparelhos” do escravagismo desapareceram com a abolição e quais outros entraram em ação?  Em “Maria Cora” e “Um capitão de Voluntários”, soam familiares as discussões sobre patriotismo, federalismo, as Forças Armadas e suas “guerras”? Em “Suje-se Gordo”, por acaso, chama-lhes a atenção o injusto tratamento desigual de réus de classes sociais e econômicas diferentes?

Não vamos adiante. Mas esperamos que vocês vão e que não tenhamos “tirado seu sono”, mas desejado um despertar para “dias melhores”. Entender para mudar. Não deixem de lado as peças de teatro, nem os textos não-ficcionais. Não deixem também que a morte que nos ronda, nos textos e na vida, no passado e no presente, paralise o seu pensar. Que ela motive reflexão e ação. E deliciem-se, é claro, com a ironia machadiana.

 
Érica Lima

ASSIS, Machado de (1839-1908). Relíquias de Casa Velha. Rio de Janeiro, 1906.

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O encanto das ruas

Neste livro de crônicas de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, mais conhecido por seu pseudônimo literário, João do Rio, o autor nos proporciona a experiência de vislumbrar as ruas — não como um lugar de passagem, um lugar onde pessoas caminham e meios de transporte passam —, mas como um organismo vivo que tem o poder de nos mostrar a cultura mais inconsciente e arraigada do povo que nelas circula. João do Rio nos permite ver as figuras que seriam invisíveis, as facetas mais escondidas e singelas da sociedade que toma conta destes caminhos. Lançado em 1908, o autor declara neste livro seu amor por estas ruas, e entre os motivos para amá-las aponta a capacidade dessas ruas de nos permitirem testemunhar os acontecimentos e os sentimentos mais controversos.

Entre aqueles que personificam essas ruas, João do Rio elenca os profissionais que fazem delas seu local de trabalho, que dependem da circulação de pessoas nestes lugares, e que fazem estes locais tão fascinantes. Fala sobre o papel das ruas na religiosidade das pessoas, e da expressão alegre dos cordões, que hoje chamamos de blocos de rua, das faces da miséria que estava escancarada nas ruas daquele tempo, tal qual ainda hoje. Expõe a relação da polícia com os que passam, com os que infringem a lei, ou com os que parecem ser abordados por suas características como se fossem elas próprias contra a lei. As crônicas falam da maldade, da fome, da mendicância, da exploração infantil escancaradas nestas veias das cidades, aldeias, povoados, dos crimes vinculados (erroneamente) ao amor ou à falta dele. O autor nos apresenta também a musa destas ruas, aquela possível, próxima a todos, aquela que faz enxergar poesia, música e dança nestas ruas. Tudo isso é apresentado aos leitores misturando prosa e poesia, dureza e delicadeza, amor e ódio, preconceito e aceitação.

Este livro nos permite pensar na relação que temos com as ruas hoje, em como o olhar de um século atrás se contrapõe, mas também se aproxima ainda hoje com nosso olhar sobre as mesmas características, sentimentos, personagens e mazelas. Exige de nós lê-lo com o contexto histórico em mente, mas com o olhar dos tempos atuais para perceber o que ali está em descompasso com a sociedade de hoje, tanto a real como a que queremos alcançar. Vale a pena se encantar com as ruas vistas pelo olhar de João do Rio, vale também olhar com encantamento para as nossas ruas de hoje, a partir desse vislumbre que o autor nos proporciona.

Ericka Martin

JOÃO, do Rio (1881-1921). A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro, 1908. 

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Perfil Literário: Maria Firmina dos Reis - Uma escritora contra o Mundo
 

Não é novidade que o Brasil possui uma enorme chaga em sua história: o período da escravidão. Seus reflexos e mazelas continuam. Os silenciamentos são históricos e uma das provas irrefutáveis disso é o fato de que uma grande escritora brasileira permaneceu incógnita por praticamente um século. 

Estou falando da maranhense Maria Firmina dos Reis. Autora situada no período histórico do romantismo, apresenta um texto ficcional que não se prende aos meros padrões estéticos e temáticos. Seu texto, embora apresente um meticuloso cuidado com a qualidade literária, apresenta-se também com um firme engajamento. Seu livro mais conhecido é Úrsula, que também é seu romance de estreia. Contudo, não é oúnico trabalho literário da escritora. E também não é seu único feito.

Professora, Maria Firmina dos Reis também atuou ativamente na luta pela educação das mulheres e meninas, tendo fundado a primeira escola mista do Maranhão em 1880. A reação foi tão contundente que a escola durou apenas 2 anos. 

Ainda que a obra de Maria Firmina dos Reis tenha ficado esquecida por tantos anos, seu romance Úrsula foi redescoberto em um sebo, em 1962. A imagem dela foi imortalizada em um busto em 1975, instalado na Praça do Pantheon, em São Luís, junto às mais ilustres figuras da história literária maranhense.

Justiça, porém, foi feita somente na atualidade, com a recuperação da memória de tão grande autora, não apenas por seu papel na luta contra o escravagismo, mas também de sua obra literária, que apresenta alta qualidade estética e busca explorar os elementos do Romantismo, escapando de soluções fáceis e finais felizes. Sua obra completa foi republicada em 2017. Dessa forma, a autora acaba por ultrapassar os limites da corrente literária e faz de sua ficção um manifesto contra as mazelas que até hoje continuam a grassar covardemente o mundo. E, infelizmente, nosso país.

Samuel Medina 

Referências: 

https://www.bbc.com/portuguese/geral-53411587

http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/322-maria-firmina-dos-reis

https://mariafirmina.org.br/

Reis, Maria Firmina dos, 1825-1917. Úrsula e outras obras ; prefácios de Ana Maria Haddad Baptista e Danglei de Castro Pereira. – 2. ed. – Brasília : Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2019. 

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