Literatura para crianças II: o que os livros para crianças não nos ensinam?
Foto: Arte/FMCBH

Literatura para crianças II: o que os livros para crianças não nos ensinam?

Apresentação

Dando continuidade à coluna do mês passado, nesta edição, voltamos a explorar a literatura produzida para crianças. A primeira ideia que tivemos para abordar os temas foi a de construir uma coluna com “livros que ensinam” e outra com “livros que não ensinam”. Depois, acabamos decidindo que seria melhor renomear para “o que os livros nos ensinam” e “o que os livros não nos ensinam”. Para essa apresentação, gostaria de aproveitar algo dessa primeira sugestão e falar um pouco sobre livros que foram escritos sem a preocupação de ensinar, de nos dar lições.

Estamos muito acostumados à visão de que os livros são objetos que carregam respostas. Dúvidas, inquietações, tristezas, dilemas existenciais ou práticos seriam abordados da melhor maneira, para nos conduzir a uma vida mais útil, simples, ativa, edificante... E quando pensamos na produção voltada para crianças e jovens, parece que essa função educadora é ainda mais presente, mais necessária - em muitos momentos e para muitas pessoas, a única possível.

Mas a literatura é (ainda bem!) sempre maior do que as definições que fazemos dela. Existem muitos bons livros para crianças que não carregam lições, ensinamentos, ou que estejam empenhados em construir valores. Ao se afastar desse potencial educativo, tanto texto quanto ilustrações podem ganhar a liberdade de irem onde quiserem, seja em brincadeiras e experimentações com a forma, a poesia, a linguagem, seja com histórias que apresentem personagens com moral duvidosa, ou ações que não são orientadas para ideias de bondade e verdade. O descompromisso permite às autoras e autores explorarem o nonsense, o absurdo, o inesperado.

É exatamente por isso que as literaturas são tão múltiplas e importantes em nossas vidas. Conseguem nos apresentar para nós mesmos, nos fazer rir e acolher as falhas que carregamos, enquanto humanos, sem julgamentos pré concebidos. Com isso nos dão a oportunidade de ponderarmos e conversarmos para que possamos estabelecer nossos parâmetros e modos de olhar para o mundo.

É importante ressaltar que não estamos (assim como a boa literatura não está) nos rendendo às críticas fáceis e quase sempre vazias tecidas sobre o politicamente correto, a inclusão, o respeito, à diversidade. Liberdade é diferente de ódio, preconceito, racismo e várias questões que devem continuar a ser tratadas de modo muito sério e delicado, também na literatura para crianças.

Para terminar essa conversa, ao pensar no nosso tema, “o que os livros não nos ensinam”, a única resposta que ocorre e que pode ser dita com segurança é: os livros não nos ensinam a indiferença. A boa literatura nos move e nos afeta, independente de seus temas, objetivos e formatos. E nossas crianças merecem o afeto da literatura.

Rodrigo Teixeira
Biblioteca Pública Infantil e Juvenil - BPIJ-BH 

Quero meu chapéu de volta

KLASSEN, Jon. Quero meu chapéu de volta. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011Você já perdeu algo que gostava muito? Já procurou e até se entristeceu por não encontrar? E depois de um tempo finalmente encontrou seu chapéu, ops, o objeto que estava procurando? Pois esse é o enredo da história “Quero meu chapéu de volta”, de Jonh Klassen, publicado pela WMF Martins Fontes.

Na narrativa, o urso perdeu seu chapéu - um chapéu vermelho e pontudo - e ele o quer de volta. Ao longo das páginas, o urso questiona vários animais acerca do sumiço, mas ninguém (ou quase ninguém) sabe do chapéu. Em um dado momento, ele passa por uma lebre, que nega com veemência saber do paradeiro do adorno. A história vai se desenrolando e o urso cada vez mais desolado. Até que, ao ser questionado sobre como é seu chapéu, ele se recorda de tê-lo visto e, então, corre para recuperá-lo. Ao fim e ao cabo, o urso termina a história com seu amado chapéu.

O texto curto e direto, somado às ilustrações simples e extremamente expressivas, são um convite à leitura do livro. O que se aprende ao ler um livro como esse? Qual é a lição de moral? E por mais que se busque uma “função” para a saga do urso em busca do seu chapéu, esse é um livro despretensioso, que não pretende educar, ao contrário. A história não é um meio para um fim.

Comumente, a literatura é colocada em um patamar de “salvadora da humanidade'', e é habitual encontrar quem diga que “quem lê livros é mais inteligente, educado”. No entanto, é necessário questionar e libertar as histórias desse peso de (sempre) ensinar e/ou educar acerca de algo. Ou seja, é fundamental ler pelo prazer de ler, sem esperar e/ou querer algo em troca. A literatura pode ter várias funções, mas também não ter nenhuma e, está tudo bem. 

Shirley Rodrigues
Centro Cultural Vila Santa Rita

KLASSEN, Jon. Quero meu chapéu de volta. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011

 

Zoom

BÁNYAI. István. Zoom. São Paulo: Brinque-Book, 2002.Expoente do livro imagem, também conhecido como livro sem palavras, “Zoom” é o primeiro do gênero de autoria do ilustrador húngaro István Bányai. A narrativa nos leva a uma viagem colorida e cheia de detalhes que vai mudando a perspectiva a cada virar de páginas.

Com cenários familiares à maioria das pessoas, o livro cria uma fácil identificação do leitor, já que a leitura imagética, assim como a textual, cria laços com o leitor por apresentar o novo com uma possibilidade alternativa à sua própria visão do mundo. 

Considerado como livro infantil ilustrado, “Zoom” é um deleite para leitores atentos de qualquer idade. A cada novo manuseio, eles podem experimentar uma nova leitura dos detalhes da imagem. Para leitores adultos, nos faz também refletir sobre nosso minúsculo tamanho diante do universo e, ao mesmo tempo, podermos ser o universo para coisas muito menores que nós. Ainda que o leitor nada aprenda ou queira aprender com esse livro, ele proporciona um bom encontro entre os pequenos (e grandes) com a bela ilustração de István Bányai.

Este livro é um dos vários que temos disponíveis em nossas bibliotecas que podem ser folheados com pressa ou com tempo. As crianças se atraem pelas cores diversas e fortes. Mesmo aquelas que ainda não sabem ler palavras conseguem desfrutar da leitura de suas imagens. Os adultos se atraem muitas vezes pela relação afetiva que as imagens suscitam em nós, esse é meu caso. Cada vez que retorno ao “Zoom” vejo mais detalhes e faço novas leituras, novas interpretações. Cada vez que o recomendo para os leitores, pergunto as impressões que tiveram e garanto que são muito diversas, as interpretações e as leituras. 

Por ter uma capa simples, ainda que de um chamativo vermelho, ele pode passar desapercebido aos leitores menos frequentes. Por isso, faço questão de sempre recomendá-lo, mediando esse primeiro olhar, e sempre recebo as melhores respostas no retorno dos que o levam emprestado ou dos que, com tempo para ficar, o leem na própria biblioteca. 

“Zoom” é daqueles livros que não têm um ensinamento a oferecer, não debate uma questão complicada de forma mais palatável para uma criança ou leitor menos experiente. Ele nos dá apenas (ou seria, justamente?) a oportunidade de fruir o encontro da linguagem das imagens que dentro de nós transformamos em outras linguagens e leituras.

Por estes motivos, acredito que a obra é um representante destes livros que não nos ensinam, mas voltam nosso olhar para os pequenos detalhes e para os grandes contextos, assim na arte, na literatura ou na vida.

Ericka Martin
Centro Cultural Zilah Spósito

BÁNYAI. István. Zoom. São Paulo: Brinque-Book, 2002.
 

Perfil Literário 

Uma feiticeira de imagens e palavras

Foto: Eva FurnariQuem curte literatura infantil e juvenil dificilmente não ouviu falar de Eva Furnari. No caso, os adultos. Já as crianças conhecem seus livros e personagens, como a Bruxinha Zuzu e seu companheiro, o gatinho Miú. Seus livros são muito procurados pelas crianças e não somente por elas, mas por leitoras e leitores de todas as idades.

Escritora e ilustradora ítalo-brasileira, Eva Furnari possui uma obra vasta e muito rica, que tem como sua marca explorar o inusitado e o nonsense, cuja autora lança mão do absurdo para construção do humor em seus trabalhos. Sua literatura é pautada por um humor muito característico, onde ela explora personagens e situações deslocadas de seus usuais lugares. 

Nascida em Roma, Eva logo se mudou com sua família para o Brasil em 1950, quando tinha dois anos. Formou-se em Arquitetura pela USP, e a partir de 1976 dedicou-se inicialmente a livros de imagens. Dentre esses livros, destaca-se os da Bruxa Zuzu, uma personagem muito atrapalhada.  Através dela, Furnari criou uma série de narrativas de imagem que lembram elementos da palhaçaria circense para criar um humor despretensioso. E por falar em humor circense, um dos primeiros personagens sem falas de Eva Furnari é justamente o palhaço Amendoim, que agradou crianças pelas gerações com suas estripulias.

Na premissa do humor inusitado e nonsense, temos livros como “Você troca?”, “Não confunda” e “Zig Zag”. São livros em que a autora embaralha nomes e expressões comuns na literatura infantil para criar personagens malucos como o “lobo feio “ e o “patinho mau”. É muito comum observar, também, a predileção que a autora tem por bruxas, com suas personagens Zuzu, Filó e Marieta, a Bruxa Zelda, a Bruxinha, a Sorumbática dentre outras. Nada mais natural para alguém que domina a magia no traço e na palavra.

Como escritora, Eva Furnari criou narrativas como “Felpo Filva”, que conta a história de um poeta coelho tímido e também atrapalhado. E por falar em atrapalhações, temos também a família Gorgonzola, com todo um universo de narrativas inusitadas e malucas.

Recebeu em vários anos o Prêmio Jabuti nas categorias livro infantil e ilustração. Pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil recebeu em diversas obras o selo “Altamente Recomendável” e “O Melhor para a Criança”. Nada mais justo para uma artista do calibre de Eva Furnari. Seus trabalhos mais recentes são "Drufs" (2016) e "Tantãs" (2019).

Samuel Medina
Gerência de Bibliotecas e Promoção da Leitura e da Escrita

 

Para visitar as Bibliotecas da Rede Municipal e pesquisar seu acervo, acesse informações no site: pbh.gov.br/reaberturabibliotecas