Coluna Literária – Literatura para as infânicas: o que os livros nos ensinam?
Foto: Arte/FMCBH

Coluna Literária – Literatura para as infâncias: o que os livros nos ensinam?

Apresentação

Essa é a primeira coluna literária a abordar livros produzidos para crianças. Nós, que trabalhamos com bibliotecas, dedicamos grande parte do nosso tempo (e afeto, também!) lendo, discutindo, aprendendo sobre esse tipo particular de obra. As crianças são muito presentes no cotidiano das bibliotecas e para nós é muito importante estimular que elas se relacionem com livros, histórias, autores e todo o universo da literatura.

No geral, tudo nos livros para crianças é diferente do que comumente se edita para adultos, desde a extensão do texto, o projeto editorial, a linguagem, a relação com a ilustração. É fácil encarar essas diferenças como "facilitadores" ou "filtros", como se o texto para a criança não precisasse ser complexo, poético, desafiador.

Há nessa noção dois problemas. Um em relação às crianças, outro em relação aos livros. Quando se pensa no livro para crianças como um objeto "menor", uma literatura "menor", é porque também se possui um conceito de criança como um indivíduo inferior e limitado, quando comparado ao adulto.

Entretanto, as crianças são sujeitos complexos, questionadores e curiosos. Estão em busca de entender seu papel no mundo e se questionam sobre tudo o que existe, como qualquer adulto (às vezes até mais). Livros para crianças procuram dialogar com seus anseios e, tanto quanto qualquer literatura “adulta”, ser poéticos e incômodos.

O que nos traz ao recorte que escolhemos para o tema da coluna: o que esses livros ensinam? Essa pergunta é recorrentemente feita por pais e professores, em busca de auxílio para o processo de desenvolvimento infantil, a transmissão dos hábitos, dos valores, uma forma de mediar conversas delicadas. E livros nos ajudam muito com isso… também. Mas é muito importante saber que a literatura e as artes visuais, por mais que comuniquem, transmitam, ensinem e apontem, têm uma função muito maior em fazer algo como o oposto disso, caminhando na direção da perplexidade, do espanto. Ao invés de solucionar uma dúvida, a boa literatura geralmente nos apresenta um universo ainda maior e mais complexo do que o que tínhamos em mente, antes de iniciarmos a leitura. Talvez mais que os assuntos abordados, os livros nos ensinem sobre uma forma de olhar o mundo em silêncio, ou nos ajudem a criar a coragem necessária para indagá-lo, com voz firme e cabeça erguida.

Isso fica muito claro nos livros que escolhemos para apresentar desta vez: Érica Lima fala de “Para onde vamos”, de Jairo Buitrago e Rafael Yockteng, editado pela Pulo do Gato; Eva Martins resenha “O homem que amava caixas”, de Stephen Michael King, um clássico da Brinque-Book; e Daniela Figueiredo traz o perfil literário da autora portuguesa Isabel Minhós.

Finalizo com uma pequena anedota sobre livros e leitores. Conta-se que, certa feita, perguntaram à  ngela Lago, autora e ilustradora de livros para crianças, sobre o que os livros ensinam e ela respondeu com a ironia que seus leitores conhecem bem, dizendo “Os livros não ensinam nada. Mas a gente aprende, mesmo assim”.

Rodrigo Teixeira
Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de Belo Horizonte - BPIJ-BH

Perfil literário – Literatura para crianças capaz de alçar voos

Foto: Isabel Minhós Martins/Divulgação Atualmente, faço parte da Comissão de Seleção de Acervo da Fundação Municipal de Cultura, atividade que exerço com extremo prazer, particularmente quando estou pesquisando a literatura infantil. Nessa trajetória, vou criando vínculos com autores, autoras, ilustradores e ilustradoras do Brasil e do resto do mundo. Por isso, nesta edição da coluna, apresento o perfil literário de Isabel Minhós Martins, escritora portuguesa, uma das fundadoras da editora “Planeta Tangerina”.

No difícil contexto em que vivemos atualmente, o cenário da literatura infantil nos traz acalento, pois há tantos livros bonitos, sensíveis, com projetos gráficos surpreendentes e temáticas relevantes. Em outros tempos, algumas abordagens seriam inimagináveis nos livros para as crianças – morte, questões de gênero, abandono, separação, trabalho infantil, guerras – só para citar algumas. Isabel Minhós está totalmente conectada à evolução da produção literária para crianças. A escritora tem vários livros publicados no Brasil, disponíveis para empréstimo na rede de bibliotecas da FMC. Lançados pela editora Peirópolis, há “O mundo num segundo” (2013); “Obrigada a todos!” (2016); “Enquanto meu cabelo crescia” (2013); e “Com o tempo” (2015). “Andar por aí” (2017) e “É mesmo você” (2017) são da editora 34. E, ainda, “Lá em casa somos” (2012), ed. Cosac & Naify; e “A grande invasão” (2009), ed. Panda Books.

Mas, afinal, o que os livros nos ensinam? Compreendo que a aprendizagem com os livros de literatura na infância requer o compromisso de apresentar-lhes textos capazes de alça-las “para além das restrições da vida cotidiana” (COMPAGNON, 2012, p. 60). É nessa direção que vai a produção literária de Isabel Minhós. A irreverência de suas obras já é notada nos projetos gráficos, como em “O mundo num segundo”, ilustrado por Bernardo Carvalho, que tem quase o tamanho de um livro de bolso. As imagens lembram os quadrinhos e ocupam a página inteira, além de serem bastante coloridas e alegres. Outra característica que se destaca é a criatividade com que as narrativas são construídas a partir de situações inusitadas: “Enquanto você vira a página deste livro, o mundo não para.../Um barco é surpreendido por uma tempestade no Mar Báltico” e, assim, continua a história. Em “Obrigado a todos!”, ilustrado por Bernardo Carvalho, a escritora faz um jogo de contrários: “Tenho aprendido muitas coisas/Minha madrinha continua a me dizer “Tenho tanto para te ensinar...”. 

Chegando ainda mais perto da pergunta que dá título a esta edição da coluna, quero comentar sobre o meu livro preferido, “Lá em casa somos”, ilustrado por Madalena Matoso. Para aqueles que procuram conteúdos específicos nos livros infantis, a fim de ensinar algo às crianças, talvez esta obra seja associada ao ensino das partes do corpo humano ou aprender a contar e compreendo que não há problema nisso. O problema é quando a potência da literatura – linguagem, ilustração, projeto gráfico, poesia, ritmo, enredo etc. – , como se vê em “Lá em casa somos”, deixa de ser protagonista nas práticas leitoras, ficando reduzida à mera ferramenta de ensino. Isto é, o encontro entre leitores e livros, como possibilidade de trocas, descobertas, construção de significados, negociação de sentidos, é esvaziado. Então, se ainda não conhece a produção literária de Isabel Minhós para as crianças, eis o convite para descobri-la.

Daniela Figueiredo
Gerência de Bibliotecas Promoção da Leitura e Escrita - GBPLE

COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

Entre muros e pontes: para onde vamos?

“Para os andarilhos invisíveis que atravessam os países”.
JB 

Entre muros e pontes: para onde vamos?Para onde vamos, entre tantos muros (e não são poucos) que dividem o nosso mundo? Para que serve um muro? Quais as pontes possíveis? Das muralhas que protegiam e delimitavam impérios, passando pelas cidades fortificadas da Idade Média, até os muros contemporâneos, o que realmente nos separa e o que nos une? Se buscarmos essas respostas na História – um exercício necessário, principalmente no momento atual –, o que aprendemos? E se buscarmos as respostas nas histórias, mais precisamente nas histórias que se produzem para as infâncias, nos livros de ficção a elas destinados? O que eles nos ensinam?

No percurso (e discurso) histórico, uma motivação aparece em destaque: a segurança. A Muralha da China, a Muralha de Adriano e os muros que delimitavam e protegiam as cidades da Idade Média de constantes ataques são exemplos. Ainda, os motivos religiosos, como testemunham a Muralha de Avignon e a Muralha de Carcassonne. Também as motivações político-religiosas, como nas Linhas de Paz, em Belfast, nas Muralhas de Bagdá, ou as divisões político-ideológicas, como na barreira que divide as fronteiras da Coreia do Sul da Coreia do Norte, ou, no mais famoso, o Muro de Berlim. A partir desse rápido panorama e nos aprofundando na miríade de muros que compartimentam nosso mundo, desde há muito, assoma-se uma percepção: os discursos de segurança, nacionalismo, territorialismo, religiosos, políticos e ideológicos se misturam e criam narrativas repletas de violência e, para alguns, de espanto. Narrativas que motivam e justificam barbaridades há tempos jurídica e eticamente condenadas. Em oposição, vemos surgirem, ainda no movimento histórico, mas não só, contranarrativas que buscam criar pontes, num momento em que elas, devido à radical polarização em que vivemos, parecem impossíveis.

Mas e no campo da literatura, da literatura para as infâncias, como entender o que faz muro e o que faz ponte? Com texto de Jairo Buitrago, ilustrações de Rafael Yockteng e tradução de Márcia Leite, o livro “Para onde vamos”, da editora Pulo do Gato, promove o movimento necessário: a história de uma menina, que viaja com seu pai, sem saber para onde vai, comove, sensibiliza e, principalmente, faz pensar. Enquanto viaja, a menina vai contando tudo o que vê: cinco vacas, quatro galinhas e um coiote, que, para ela, é o nome dado pelo seu pai a um “cachorro grande”, sempre presente na viagem. As ilustrações, em rico e nada banal diálogo com o texto em palavras, revelam-nos de que viagem se trata: a travessia da fronteira do México com os Estados Unidos. As palavras nos conduzem pelo raciocínio infantil, que, ainda que busque por respostas – para onde vamos? pergunta a menina por diversas vezes –, abre-se ao encontro: com a paisagem, os animais, as pessoas, as estrelas. Uma amizade com uma outra criança, ainda que breve. A contemplação do céu, a percepção das expressões das pessoas, o sonho. As ilustrações situam-nos na dura realidade dos que precisam partir em busca de melhores condições de vida, mas também não abandonam a pureza do olhar da criança. Somos afetados: tudo o que sabemos sobre a dura realidade dos refugiados, dos migrantes, dos “andarilhos invisíveis” se choca, mescla-se e se amplia pelo contato com a esperança. Enquanto seu pai conta o pouco dinheiro restante na carteira, a menina se deslumbra com um presente recebido: dois coelhos brancos. E a viagem continua.

Érica Lima
Biblioteca Centro Cultural Salgado Filho

BUITRAGO,  Jairo. Para onde vamos. São Paulo: Pulo do Gato, 2016.

O Homem que amava caixas 

Foto: O Homem que amava caixas A história de “O Homem que amava caixas”, de Stephen Michael King, tradução de Gilda de Aquino, editora Brinque-Book,  fala do relacionamento entre um pai e seu filho. Um homem simples, calado, de poucas palavras ou, melhor dizendo, carente delas. Cada um vivendo em seu próprio mundo: inventado ou imaginário.

O filho tinha um enorme amor pelo seu pai, mas este vivia preso no seu mundo, cercado pelas caixas que encontrava pelo caminho, e que as transformava em castelos, aviões, barcos, enfim, tudo o que era possível criar para brincar com o menino. O homem também tinha um enorme amor pelo seu filho, mas não sabia como dizer, como demonstrar este amor.

A história aborda  a dificuldade que algumas pessoas possuem em demonstrar e expressar seus sentimentos, sejam eles bons ou não, e a nossa busca constante de estar em contato com o outro, seja por um gesto, um olhar, um sorriso, um toque ou por palavras.

Com seu gesto de construir brinquedos com as caixas, o homem se aproximou do seu filho e, através das suas brincadeiras, conseguiu demonstrar ao filho todo o seu amor. Também permitiu ao filho descobrir em meio às caixas o quanto sentir este amor era necessário. Mesmo diante das desconfianças e os apontamentos dos vizinhos, o homem conseguiu transformar uma relação carente de gestos afetuosos em um momento único, regado de brincadeiras e muita parceria.

O amor desperta alegria, cumplicidade, dedicação, escuta, gratidão, paciência, permissão e respeito. Nem sempre é fácil demonstrar nossos afetos, é um exercício diário e individual. Porém, percebemos com essa história que, mesmo quando existe um amor verdadeiro, é necessário dar ao outro a liberdade, o espaço e o tempo para amadurecer esse sentimento. “O Homem que amava caixas”, com toda sua sutileza, nos provoca uma reflexão:  o amor só exige o compromisso de ser simples e verdadeiro.

Eva Martins 
Biblioteca Centro Cultural Venda Nova

KING, Stephen Michael de. O Homem que amava caixas. São Paulo: Brinque-Book, 1995.
 

Para visitar as Bibliotecas da Rede Municipal e pesquisar seu acervo, acesse informações no site: pbh.gov.br/reaberturabibliotecas