Oguns kabecilês – Enxadigma é uma proposta de site Specific que combina objetos escultóricos numa elaboração com signos mito-poéticos tendo como impulso criativo a iconografia da religiosidade de ascendência africana, acrescido com a questão da terra e as lutas quilombolas. Há cerca de uma década venho nessa investigação incessante com o objetivo de construir objetos que interfiram na paisagem urbana, utilizando a licença poética para produzir em ferro esculturas numa perspectiva tridimensional, tendo no ícone “enxada” uma metáfora para abordar as distorções sociais, a complexidade nacional, sobretudo destacar a importância da população afrodescendente na formação da cultura da sociedade brasileira.
Na instalação que se ergue no Centro de Cultura Popular e Tradicional Lagoa do Nado veremos sob nosso olhar: textura e símbolos em ferro que remetem ao terreno da ancestralidade, como arquétipos oriundos de uma vasta cosmologia. Por outro lado, este “enxadograma” escrito em ferro abre a possibilidade de interação, manuseio, provocações dos sentidos e reflexão histórica, tratando-se de uma oferenda em aço para celebrar as africanidades presentes na cidade de Belo Horizonte e homenagear os homens e mulheres negras que contribuíram com a construção da cidade, tanto do ponto de vista de sua edificação, como na invenção cultural.
Esta intervenção poderia estar instalada em várias cidades brasileiras, pois os utensílios em ferro abrem um diálogo, resgatando histórias silenciadas, como a contribuição do homem e da mulher negra na construção da história do país. A enxada se caracteriza como um discurso híbrido e polissêmico, como “provedora de vida” e sentido, com inúmeras possibilidades de interpretação no contexto da arte contemporânea. O objeto enxada, como referência, não evidencia apenas a dimensão religiosa, abarca um entendimento mítico, ideológico, estético e político, indo além do senso comum da ferramenta da exploração do trabalho, representando uma libertação imagética e simbólica. Os objetos nascidos de uma cosmopercepção dialogam com a natureza e o ecossistema do parque, sobretudo com transeuntes, em seu aspecto amplo: cultural, social e ecológico, de certo, soa como uma voz dissonante e poética, como uma cantoria de preto contra uma opressão que necessita cada vez mais ser combatida a ferro e fogo, diluída sob o calor das massas.
Debruçar a percepção nessa signage batizada de Oguns Kabecilês – enxadigmas é entender o passado com o sentido no futuro e vice-versa. São 10 objetos que foram construídos a partir de rascunhos, às vezes riscados no chão, outras vezes com giz, em
outra, com pemba, em outro momento, escrito no papel, transportados para um software e hospedados no computador para depois se tornarem uma oferenda em ferro, moldadas com fogo numa evocação ancestral que nos exige justiça e o fim do
silenciamento. Desse modo, torna-se uma linguagem exposta, murmura o que o corpo negro revela, em suas violências sofridas,
inscritas na civilização, perpassa a cidade, atravessa o campo e transborda nas diásporas.
Sem exagero e pretensão, o ferro aqui protagoniza a incorporação do oriki, nkise vestido de chapa de aço, é verbo de
fluidez, substância, confluência densa e delicada, é poema, é canto de resistência que conclama os ‘’Oguns e kabecilês’’ em
nome da liberdade daqueles que virão fazer a travessia na encruzilhada desse horizonte por uma nova história.
Texto: Babilak Bah - escultor e artista plástico, autor das obras Oguns Kabecilês – enxadigmas