Coluninha Literária
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COLUNINHA LITERÁRIA - 6ª EDIÇÃO

Desafios de abordagem temática em livros para crianças

A literatura para pequenos leitores é algo relativamente novo no campo da produção literária. Se considerarmos toda a trajetória da literatura, podemos até dizer que é uma tendência novíssima. Afinal, em milênios de produção literária, é possível perceber uma certa linhagem que remonta às fábulas gregas, originadas na tradição oral, com certo viés moralizante, numa espécie de “função pedagógica”. Porém, esse aspecto não estava voltado necessariamente para as crianças e sim para públicos de diversas faixas etárias.
A modernidade trouxe também um olhar cuidadoso para as infâncias, o qual tem sido cada vez mais qualificado. É ponto pacífico que a experiência da criança deve ser protegida e resguardada. Porém, ela não deve ser alijada da experiência estética, propiciada por diversas linguagens artísticas, dentre elas a literatura.
Resgatando a ideia da “função pedagógica”, é possível perceber que os primeiros textos especialmente voltados para as crianças carregavam um aspecto fortemente utilitarista. Narrativas que citavam “bons” ou “maus” exemplos, com suas devidas recompensas e punições. Havia também textos que apresentavam um tom ingênuo, como se esta fosse uma característica inerente às infâncias. Textos sobre virtudes a serem seguidas. Um clássico da literatura para crianças é justamente “Juca e Chico”, de Wilhelm Busch, traduzido para o Brasil por Olavo Bilac. Nesta narrativa, os dois meninos cometem atos terríveis, sendo também terrivelmente castigados. Assim, é possível perceber que, tendo em vista o objetivo “pedagógico”, a criança não é poupada da violência.
Como não foi poupada a criança leitora dos Grimm, com seus “Contos Infantis e Domésticos”, onde é possível testemunhar atos cruéis e violentos. Sendo assim, o argumento de que os “clássicos” seriam as melhores opções para as crianças acaba por ser falacioso, caso tal argumento venha junto do desejo de que elas sejam preservadas de qualquer cena violenta ou perturbadora.
Fato é que com a evolução das diversas pesquisas sobre o desenvolvimento das crianças, vários discursos foram surgindo, todos com seus objetivos e vieses. Na produção e distribuição da literatura infantil, muitas vezes o livro acaba por se tornar um objeto utilitário, uma ferramenta, bem como um produto sujeito a uma lógica de mercado. 
Não podemos negar os movimentos moralizantes que buscam uma certa “higienização” da literatura para crianças, justamente com esse argumento de preservá-las. Com isso, são produzidas obras insossas, rasas, sem apuro estético ou profundidade temática. Contudo, numa contra-corrente, muitas obras para crianças apresentam sensibilidade, ousadia e talento para abordar temas considerados difíceis ou até mesmo impossíveis de ser abordados em textos para crianças. Autoras e autores que lançam do humor, da inventividade, da sensibilidade e da delicadeza para produzir obras profundas, transformadoras e inquietantes.
Tendo isso em mente, a Sexta Edição da Coluninha Literária - Desafios de abordagem temática em livros para crianças - apresenta obras questionadoras e potentes, com as resenhas de Renata Tunes, com "O menino perfeito", de Bernat Cormand, e Flávia Paixão, com "Leila", de Tino Freitas. O perfil literário da disruptiva Babette Cole é assinado por Daniela Figueiredo. 
É importante lembrar que as melhores histórias são para todas as idades. Portanto, a literatura para crianças hoje tem apresentado uma diversidade de trabalhos que impactam amplamente diversas gerações, mostrando com primor o quão fundamental é refletir, pensar e, antes de tudo, sentir.

Samuel Medina
Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de Belo Horizonte

 

Entre o silêncio e a beleza: “O Menino Perfeito”, de Bernat Cormand

Há livros que nos contam uma história. E há outros que nos contam a nós mesmos.  “O Menino Perfeito”, de Bernat Cormand, pertence a esta segunda e delicada categoria: a  dos livros-espelho, que convidam o leitor a entrar em si e perguntar: quem sou eu quando  ninguém está olhando? 
Daniel é o protagonista. Um menino como tantos — ou assim parece. Durante o dia, ele cumpre os rituais da obediência: é educado, tira boas notas, responde com doçura aos comandos do mundo. É, nas palavras do título, o menino “perfeito”. Mas à noite,  quando o silêncio da casa permite outras existências, Daniel guarda um segredo que não ousa compartilhar. 
A narrativa não é sobre a revelação de um segredo apenas. É sobre o tempo  necessário para que um menino deseje ser inteiro — mesmo que isso signifique abandonar  a perfeição esperada. 
“O Menino Perfeito” não é um livro de fácil digestão. Ele pede pausa. Pede escuta e mediação afetiva. Pede que o mediador se desarme de certezas e entre na narrativa disposto a mais perguntas do que respostas. 
Cormand não nos oferece respostas fáceis. Ele nos oferece algo mais raro: a  chance de sentir com profundidade. De pensar com o coração. E de lembrar que, na  formação de nossas infâncias, a ternura não é um adorno. É resistência. Porque num mundo que ainda oprime a diferença, um livro como “O Menino Perfeito” é uma flor nascida no asfalto. Um lembrete de que a literatura pode — e deve — ser um espaço de acolhimento, de reinvenção e de liberdade. 
E se nossos pequenos leitores, ao se depararem com Daniel, perceberem que também podem ser quem são, então teremos feito da leitura não apenas um ato estético, mas um gesto de amor. E de futuro.

Renata Tunes
Leitora da BPIJ-BH

 

“Leila”, de Tino Freitas e Thaís Beltrame

Leila é uma baleia jubarte filhote: grande, livre e feliz. Tem longas madeixas e adora nadar ouvindo música. Um dia, seu passeio é interrompido pela presença do polvo Barão, seu vizinho, que invade o seu território e toca seu corpo sem permissão. Ela não quer a companhia dele, ela não quer nadar com ele. Mas ele a acompanha assim mesmo. Amedrontada, ela se cala diante dele e de suas atitudes abusivas. Até que um dia, apoiada por amigos, pelo poder do cuidado, do acolhimento, ela encontra a sua voz para se libertar do constrangimento e do medo.
O livro “Leila”, de Tino Freitas, tem como temática o abuso sexual infantil e aborda o tema de forma delicada e extremamente corajosa. Com poesia, beleza e encantamento, “Leila” dá voz a crianças e adultos que em algum momento sentiram-se abusados, silenciados ou violentados. A ilustração de Thais Beltrame, desenhadas com traços finos e finalizadas em nanquim aguado e aquarela, além de plasticamente linda, conta a história com extrema delicadeza, ora densa, difícil, dolorida; ora leve e libertária, construindo junto com o texto uma narrativa surpreendente. 
A ambientação da narrativa, localizada no fundo do mar, apresenta um viés simbólico, sendo o Barão um ser das profundezas - um polvo - capaz de evocar o asco provocado por abusos, muitos deles velados. Assim, a baleia Leila também assume um lugar simbólico, pois é toda corpo. Há também o contraste na fragilidade da protagonista, vítima de um insidioso e dissimulado abusador.
Com “Leila”, Tino Freitas e Thais Beltrame criam uma obra questionadora, incômoda, mas também profundamente sensível. É nessa sensibilidade que reside sua força. Uma potência esmagadora, que marca, de forma contundente, como é importante a consciência de que o corpo é território íntimo e que nenhum abuso será tolerado. “Leila” está disponível para empréstimo no acervo da BPIJ-BH.


PERFIL LITERÁRIO: Babette Cole

Babette Cole foi uma escritora britânica, falecida em 2017. Recebeu vários prêmios pela sua produção literária para crianças, iniciada em 1970. Com diversos livros publicados, entre eles e, talvez, o mais famoso no Brasil “Mamãe botou um ovo” (1994), suas narrativas trazem temas que, na atualidade, são nomeados, na literatura para crianças, como sensíveis, polêmicos ou fraturantes. Neste escopo estão incluídos assuntos como morte, sexualidade, gênero, separação, trabalho infantil, deslocamentos forçados, entre tantos outros. Ou seja, conteúdos que geram até hoje controvérsias no sentido de serem ou não apropriados para os pequenos leitores. Mas, a escritora e ilustradora tem em suas obras uma dose de humor na medida certa, apresentando personagens inusitados como o Sr. e a Sra. Hormônio, presentes em “Cabelinhos nuns lugares engraçados” (1999).
A escolha de Babette Cole para o perfil desta edição aponta para o pioneirismo dos temas abordados em suas obras, quando a produção literária para crianças não era tão diversa. E, nesta direção, lembramos de “Dois de cada” (1998) e “Caindo morto” (1996). Além da narrativa irreverente, a autora também ilustrava seus livros e, em várias edições, o projeto gráfico foi bem cuidado pelas editoras Ática e Cia das Letrinhas.
Então, se você, como nós, acompanha a evolução da produção literária para crianças e, ainda, não conhece a obra de Babette Cole, fica o convite para descobri-la. Os livros da autora estão disponíveis para empréstimo na BPIJ-BH!

Daniela Figueiredo
Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de Belo Horizonte