19ª Coluna Literária - Cultura Popular - Literatura e outras reflexões
Apresentação
Na África, cada ancião que morre é uma biblioteca que se queima.
Amadou Hampâté Bâ
Essa é uma reflexão do pensador malinense, Amadou Hampâté Bâ, e traduz a importância da transmissão oral na África e o sentimento de ouvir um sábio do continente fazer o relato das suas experiências. A analogia nos faz entender que, ao ouvir essas personagens, muitos livros se abrem, nos trazendo conhecimentos com muito refinamento e profundidade. E é nesse contexto que as histórias locais e as tradições daquelas comunidades são retratadas.
Entendemos que, culturalmente, convivemos com o modelo de cultura oficial, representada pelo poder político e pelas elites culturais e econômicas. Elas normalmente são rígidas, engessadas. Os conceitos e conhecimentos são transmitidos nas academias, por livros, e por teorias elitistas, excludentes, assim como pela mídia, jornais, revistas, televisão, publicidade etc. A televisão, por exemplo, veicula quase sempre o mesmo conjunto de valores, discursos, linguagens e regras nos diversos territórios do Brasil.
No entanto, as pessoas das classes baixas, as populações rurais, as camadas empobrecidas das periferias urbanas e as classes operárias de baixo poder aquisitivo não têm as suas culturas respeitadas. O que se observa é um processo de massificação dos pensamentos, dos modos de vida, uma tentativa de apagamento cultural por parte das classes mais altas em relação às camadas mais pobres da sociedade.
Esse segmento da população está muito mais mergulhado em uma cultura não oficial e espontânea, uma cultura popular, do que no sistema de conhecimento oficial. Particularmente no que diz respeito ao processo acadêmico, a situação é de menor estreitamento, até porque boa parte desse grupo passou muito pouco tempo estudando, ou nem passou pelos bancos escolares.
Neste sentido, pode-se associar a noção de “popular” tanto a “baixo poder econômico” como a “baixo grau de instrução”. Todavia são debates que não estão esgotados e, sim, em permanente tensão.
O que percebemos na atualidade é uma crescente valorização da cultura popular, embora saibamos da resistência de muitos em creditar valor a ela. Mas, ao nosso ver, é essa cultura que traduz o mais profundo da identidade brasileira, constituída em sua maioria pela cultura indígena e negra.
No que se refere à literatura, entendemos que grande parte dela, nomeada por muitos, como literatura negra, ainda que escrita por intelectuais, intenta dialogar com o popular. Percebemos que, muitas vezes, os seus conhecimentos, traduzidos na escrita literária, advém dos aprendizados com seus antepassados e que normalmente são transmitidos oralmente. Vejam por exemplo, um trecho do poema “De Mãe”, de Conceição Evaristo: “O cuidado de minha poesia aprendi foi de mãe, mulher de pôr reparo nas coisas, e de assuntar a vida”. (Evaristo, 2008, pág.32)
Outra escrita que nomeamos como do campo da cultura popular, é a de Patativa do Assaré, que se utiliza do improviso, da criação de repentes e versos, para se comunicar com o público. Essa forma de comunicação rasura os padrões enrijecedores que norteiam o academicismo clássico do sistema oficial de cultura. Leiamos alguns versos de Assaré: “Seu dotô que é da cidade, tem diproma e posição. E estudou derne minino, sem perde uma lição.” ( Assaré, 2005, pag.21)
Fica então o convite para que possamos respeitar e valorizar cada vez mais a nossa cultura popular, a alma da cultura nacional, até mesmo por acreditarmos que ela é intrínseca à identidade da maioria das cidadãs e cidadãos brasileiros.
Rosália Diogo
(Professora, pesquisadora, coordenadora do Centro de Referência da Cultura Popular e Tradicional Lagoa do Nado)
Referências
EVARISTO, Conceição. Poemas da Recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008 ( Coleção Vozes da Diáspora Negra, Volume 1).
DO ASSARÉ, Patativa. Uma voz do Nordeste. São Paulo: Hedra, 2000. ( Biblioteca de Cordel)
RESENHA - Coisas de Índio, de Daniel Munduruku
“Coisas de índio: um guia de pesquisa”, de Daniel Munduruku, reafirma sua importância vinte anos após a primeira publicação. A escrita simples surpreende; como é potente ler sobre os povos indígenas, quando parte de um texto é escrito por alguém que é pertencente a esse lugar. Há de se perceber o cuidado do autor, diante de tamanha riqueza ao que nos apresenta. Enquanto, ainda, pouco atribuímos valores e identidade próprios à riqueza cultural dos povos indígenas e do Brasil, e menos ainda nos compreendemos como parte dessa história, reunir em um livro temas tão patentes e necessários, como a extinção de povos, direitos, diversidade étnica, territórios, demarcação de terras e cultura, é um ato, sobretudo, de generosidade.
Os aspectos culturais que foram abordados carregam, a partir das diferentes manifestações, um forte altruísmo, sendo tecido no decorrer do livro e manifestando-se como verdadeiros ensinamentos. O entendimento dos indígenas acerca da coexistência entre humanos e meio ambiente reverbera o que há de profundo em nós, apresentando-se contrários à individualização e à exploração, uma existência fundamentada no aprendizado comunitário. A potência da criança que cresce com liberdade. Nas palavras de Munduruku: “...os índios aprendem enquanto brincam e brincam enquanto aprendem”.
Ainda que se apresente como uma enciclopédia, o livro cumpre a beleza de nos sensibilizar para a identificação com o outro, tido, até então, como desconhecido. Tomar consciência que os nossos costumes são permeados, além da herança cultural de tantos outros povos, da experiência indígena. Há uma memória dos saberes indígenas espalhadas pelo Brasil. Um livro que desperta e abre caminhos a um olhar transformador.
Fabrício Ferreira de Souza - Estagiário da Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de Belo Horizonte
RESENHA - Oxumarê, o Arco-Íris, de Reginaldo Prandi
Histórias são a herança de um povo. É com elas que as pessoas do passado nos enviam mensagens, conselhos, dúvidas e nos transmitem os ensinamentos sobre quem somos. Ouvir histórias é uma forma de se descobrir no mundo.
E se é possível dizer isso sobre as histórias que ouvimos, que temos acesso facilmente através de livros, apresentações, filmes e desenhos animados, o mesmo é verdadeiro sobre as histórias que nos foram ocultadas. Há muitas histórias, lendas, mitos e dizeres que, por diversas razões, foram proibidas de serem divididas pelo e com o povo.
Os africanos que fundaram o país onde vivemos trouxeram sua cultura, sua religião e suas histórias, que circularam em segredo por muitos anos, por culpa das leis racistas e do domínio religioso cristão, pois este tentou desesperadamente calar o povo preto e os povos originários. Como se a sabedoria, a literatura e os costumes deles fossem errados e pecaminosos. Os racistas queriam e ainda querem fingir que a cultura e a erudição pertencem a um só povo. Mas em segredo, as tradições se mantiveram, se renovaram. A cultura do povo é forte como o próprio povo e resistiu. Com o tempo, além de serem contadas, começaram a ser mais e mais publicadas em livros, estando presentes em bibliotecas e casas, nos dizendo sobre o passado, nos enviando conselhos e nos mostrando quem somos, verdadeiramente.
Um desses livros é “Oxumarê, o Arco-Íris” de autoria do professor e pesquisador Reginaldo Prandi. Esse é o terceiro livro de uma trilogia toda dedicada a narrar em linguagem acessível e poética, diversas histórias oriundas da África, que envolvem os Orixás, as divindades do Candomblé.
Ao longo do livro, além de descobrirmos como Oxumarê interrompeu a chuva com seu punhal de bronze, vamos conhecer o segredo de Iansã, a Orixá que se transformava em búfalo, assistir a Morte ajudar Ogum a vencer uma disputa contra Xangô e entender porque Ajajá, o Fazedor de Cabeças, nem sempre faz boas cabeças para os homens.
Aliada à habilidade do autor em narrar essas histórias, temos as belas e sucintas ilustrações de Pedro Rafael, auxiliando a povoar nossa imaginação com os feitos maravilhosos de Oxumarê, Iansã, Iemanjá, Ogum e vários outros Orixás.
Ao fim do livro, há também uma sessão com verbetes sobre as divindades que aparecem no texto, contendo informações interessantes sobre os costumes relacionados a elas.
O livro, além das possibilidades de fruição, é uma excelente forma de entender uma cultura que nos pertence enquanto brasileiros, ajudando a combater a desinformação e o preconceito ainda presentes em nossa sociedade.
Rodrigo Teixeira - Bibliotecário da Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de Belo Horizonte
PERFIL LITERÁRIO - Conceição Evaristo
Maria da Conceição Evaristo de Brito é escritora, romancista, poeta e contista negra, nascida em Belo Horizonte em novembro de 1946. Mora atualmente na cidade de Maricá, no estado do Rio de Janeiro.
Evaristo foi homenageada como Personalidade Literária do Ano pelo Prêmio Jabuti 2019 e venceu o Prêmio Jabuti, em 2015. Foi contemplada, em 2018, com o Prêmio de Literatura do Governo de Minas Gerais pelo conjunto de sua obra. Ela é também pesquisadora na área de literatura comparada e trabalhou como docente universitária.
No que se refere às suas pesquisas acadêmicas, destacamos que Evaristo tornou-se mestra em Literatura Brasileira pela PUC-Rio, em 1999. A dissertação defendida por ela se intitulou “Literatura Negra: Uma Poética de Nossa Afrobrasilidade”. Em 2011, defendeu na área de Literatura Comparada na UFF, a tese de doutorado “Poemas malungos, cânticos irmãos”, em que analisou a poesia dos afro-brasileiros Nei Lopes e Edimilson de Almeida Pereira e a do angolano Agostinho Neto.
O termo “escrevivência” foi cunhado por Conceição, por entender que a sua literatura está plenamente comprometida com a condição de mulher negra em uma sociedade extremamente patriarcal. Na perspectiva elaborada pela escritora, escrevivência é a vida que se escreve na vivência de cada pessoa, ao mesmo tempo em que ela escreve o mundo real à sua volta.
Rosália Diogo
(Professora, pesquisadora, coordenadora do Centro de Referência da Cultura Popular e Tradicional Lagoa do Nado)
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