Um templo da culinária mineira de boteco, com uma atmosfera acolhedora e genuína. Cerveja sempre gelada, luz baixa e atendimento direto e sem frescura: eis o Bar do Careca.
Orcinio Gonçalves Ferreira, mais conhecido como Careca, é uma figura emblemática no cenário dos bares tradicionais de Belo Horizonte. Nascido em Patos de Minas, a terra do milho, no interior de Minas Gerais, passou a infância mexendo com gado junto ao seu pai, e essas memórias construíram sua forte ligação com a culinária. Com o tempo, seu repertório se expandiu, e hoje ele prepara de tudo, com um talento autodidata que impressiona: “eu não fiz nenhum curso de gastronomia, aprendi tudo na prática. E hoje, depois de tanto tempo, até já dei aulas”, conta.
Em 1983, Careca abriu seu próprio bar no bairro Cachoeirinha, em Belo Horizonte. Desde o início, ele se dedicou a criar um ambiente acolhedor, simples e familiar, que reflete sua personalidade e paixão pela gastronomia. O chão de ladrilho, que até hoje faz parte da história do lugar, foi pintado de branco pelo próprio Careca em uma tentativa de renovar o ambiente, mas com o tempo a pintura começou a se desgastar, revelando o piso original, o que agora confere um charme peculiar ao local. As mesas, que também são as mesmas desde a inauguração do bar, guardam memórias de décadas de conversas e encontros.
Careca é um homem de personalidade forte e cheio de histórias para contar. Uma de suas maiores paixões, além da comida, é sua extensa coleção de cachaças, tão cobiçada que chegou a ser alvo de roubo duas vezes. Apesar disso, é uma pessoa querida pela comunidade, sempre recebendo presentes e gestos de carinho dos clientes e amigos. No dia da nossa entrevista, por exemplo, ele havia acabado de ganhar uma camisa autografada por todos os jogadores do time de futebol América Mineiro. Todas as quintas-feiras, passa por lá um motorista para buscar as refeições que serão servidas no jantar dos donos do Hermes Pardini. É uma prova de que, mesmo em um ambiente simples, a qualidade da comida de Careca é reconhecida e apreciada por todos os tipos de clientes.
“Aqui é o tipo de lugar que não tem música, não tem televisão. A pessoa vem, come, conversa um pouco e vai embora”, explica Careca. Sem distrações desnecessárias, é ideal para quem quer conversar e saborear o vasto cardápio, com mais de 30 itens, todos preparados com ingredientes frescos e de qualidade. Entre os destaques estão o feijão-tropeiro, que é o carro-chefe nos fins de semana, e a dobradinha com feijão-branco, outra especialidade da casa. Frequentadores de décadas ainda passam por ali, e muitos trazem os filhos e netos para conhecer o local. “Minha clientela é um espetáculo. Você não vê bêbado, não ouve palavrão; é família. Velhos, adolescentes, todo mundo junto”, descreve Careca.
Uma prova da maravilhosidade da comida feita ali é o caso da vez que ele foi dar uma palestra em um encontro gastronômico, lá conheceu uma senhora e os dois fizeram amizade. Ela passou a frequentar o bar, comer as comidas da roça feitas por Careca, até que um dia um amigo, ao vê-la, comentou que estava ali um dos maiores nomes da gastronomia do estado — ninguém mais ninguém menos do que Maria Stella Libânio, autora de diversos livros sobre culinária mineira e, ainda por cima, mãe do ativista e escritor Frei Betto. Careca ficou surpreso e honrado, principalmente depois de ela ter provado e aprovado seu tempero, considerado por ele “da roça”.
Apesar da simplicidade que envolve o local, Careca nunca compromete a qualidade do que serve. “Eu só trabalho com o que é bom. Não vendo fiado e minha cerveja é a mais cara, porque aqui a gente preza a qualidade”, afirma. Ele faz questão de estar presente em todas as etapas da operação, desde a escolha dos ingredientes até a preparação dos pratos. Nada de carnes congeladas ou industrializadas: tudo é fresco, selecionado por ele mesmo. O feijão-tropeiro é o carro-chefe do cardápio, especialmente aos finais de semana, mas outros pratos como a dobradinha com feijão-branco e a língua de boi também fazem muito sucesso.
Um momento de grande orgulho para Careca foi a visita do renomado chef Anthony Bourdain, que, ao passar por Belo Horizonte, fez questão de conhecer o bar. Bourdain provou o famoso tropeiro, além da língua de boi, dobradinha e pé de porco. “Ele disse que a comida que eu faço aqui é digna de ser servida em qualquer lugar do mundo”, conta Careca, com um brilho nos olhos. Esse reconhecimento trouxe ainda mais notoriedade ao bar, que hoje recebe visitantes de várias partes do Brasil e até do exterior.
Mesmo com todo o sucesso, Careca permanece humilde e sempre em busca de aprimoramento. “Quem acha que já sabe tudo fecha o mundo”, reflete. Para ele, a culinária é um campo vasto, cheio de descobertas diárias. Entretanto, uma preocupação constante é o futuro do bar. Ele centraliza o comando do bar, justamente por ser o responsável pelas comidas, e não permite que outras pessoas fora da família interfiram, assim, a base de quem trabalha lá são parentes que estão lá há anos para auxiliá-lo. Todos os seus filhos já trabalharam no bar, mas não têm como primeiro plano o negócio. Careca se questiona: “Quando eu parar, não sei o que vai acontecer. O nome Bar do Careca tem valor, mas meu filho não tem a mesma paixão”, lamenta.
Até lá, Careca continua com a mesma dedicação e rotina que o acompanhou por mais de 40 anos de trabalho. Ele chega cedo ao bar, organiza a cozinha, escolhe os melhores ingredientes e se envolve em cada detalhe do preparo dos pratos. Para os frequentadores, o Bar do Careca é um ponto de encontro, onde histórias são compartilhadas e novas amizades se formam. É um símbolo de resistência e autenticidade em uma cidade que, assim como Careca, valoriza suas raízes sem perder a capacidade de se reinventar.
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